Brasileiro sempre teve a mania de acreditar, que tudo o que vem de fora é melhor. E do mesmo jeito, que férias de verdade, só se for ao exterior! Miami, Grand Canyon, Deserto de Atacama, Alpes Suíços…
Felizmente comecei a buscar uns roteiros nacionais e passei a dar muito mais valor pro nosso país. Realmente não devemos nada pra ninguém no quesito de beleza natural e isso hoje já é indiscutível. A estrutura turística ainda não é das melhores, mas isso tem até as suas vantagens, pra quem gosta de por a mochila nas costas e conhecer lugares ainda não totalmente influenciados pelo turismo.
E foi assim com os Lençóis Maranhenses. Nós vimos algumas fotos das dunas, com lagos transparente, mangues e uma paisagem do outro mundo (onde mais no mundo vc encontra um deserto com lagoas entre as dunas?) e pensei: por que não atravessar esse deserto a pé?
Foram 3 meses de planejamento, indo atrás de mapas, informações, equipamentos e lá fomos nós pro Maranhão.
Às 9 horas da manhã estávamos, o Lelê e eu, embarcando finalmente no nosso Itapemirim “executivo” (que serve até café e água!), que nos levaria a cidade de Parnaíba, no Piauí, no outro extremo do Brasil, onde encontraríamos os outros 3 companheiros de viagem, a Lilian, o Mark e o Melly, que foram direto de avião.
Aos poucos fomos conhecendo a nossa nova família, que nos acompanharia pelos próximos 2 dias e meio. Histórias e lendas da época de Lampião, comidas, costumes e jargões, que você só ouve nesses lugares… Uma verdadeira aula de cultura popular e realmente brasileira.
Um passageiro, que não parava de reclamar, foi indagado pelo outro: “Ô pé inchado, tá com cachibrema?” O ônibus caiu na risada e nós ficamos tentando # Para ler o restante desse relato, clique aqui!
decifrar a frase. Pé inchado era até compreensível, depois de tanto tempo sentado, mas “cachibrema” só descobrimos depois: era a junção de cachaça, chifre e “pobrema”. Mais uma pro caderninho!
Atravessamos o delta do Parnaíba numa “barca” (ou chalana, gaiola, etc) até a cidade de Tutóia, já no lado maranhense, passando por várias vilas, nas quais eram embarcados engradados de carangueijos, um dos principais pratos e atividade econômica da região. A viagem durou 7 horas nessa embarcação de 2 andares, onde ao invés de assentos, aloja-se em redes, costume típico do local. A barca é o único transporte coletivo da comunidade dos vilarejos do delta, devido à dificuldade de locomoção pelas péssimas estradas de areia. Existe a bordo até uma vendinha com bolachas e prato feito, mas é mais seguro ter a sua refeição na mochila, principalmente quanto à água potável, que nunca se sabe o efeito que ela causa…
Umas das aves que mais chama a atenção no percurso, é o guará, uma garça de coloração vermelha berrante, que é um dos cartões postais do delta. Apesar de nascer acinzentada, ele adquire essa coloração devido a um tipo de crustáceo, do qual se alimenta no mangue.
E pras lendas sobre sucuris e outros bichos é só puxar papo com algum passageiro local, que lá vem história!
No outro dia, pegamos uma toyota com assento de tábuas na caçamba, que é o tipo de transporte coletivo terrestre da região e fomos até Paulino Neves ou Rio Novo, passando por várias vilazinhas entre as estradinhas de areia e mangue. Muito curioso foi passar por vilazinhas “fantasmas”, literalmente “engolidas” pelas dunas. Impressionante a força e persistência da natureza!
Mochila nas costas e vamos pra primeira etapa: os Pequenos Lençóis. Com aproximadamente 24 km de comprimento, suas dunas não são tão altas como nos grandes Lençóis e descidimos fazer parte pelo meio das dunas e parte pela praia imensa, até Caburé, às margens do rio Preguiça, fronteira com os grandes Lençóis.
A caminhada pela praia realmente não é muito interessante, um tanto monótona e os pequenos Lençóis são apenas uma pequena amostra dos grandes Lençóis. Outra opção mais rápida é pegar uma toyota de Tutóia a Caburé, que possue algumas pousadinhas rústicas, entre o rio e a praia.
Especial é a cidadezinha de Mandacaru, na margem esquerda do rio, com o seu farol com uma belíssima vista e um povo muito acolhedor. Acabamos ficando na casa de “seu” Catarino, um senhor de certa idade, que já foi o campeão do carangueijo, pegando 83 em 1 hora! Muito simpático e ótimo cozinheiro, diga-se de passagem! Depois acabamos descobrindo, no seu livro de visitas, que pessoas ilustres já se hospedaram lá, como Araquém Alcântara e vários outros.
O plano original era entrarmos no deserto por Atins, mas descidimos então pegar mais uma barca até Barreirinhas, pelo rio Preguiça, e tivemos até a sorte de ver uma “vaquejada”, festa de boiadeiros típica, que foi muito legal.
Depois de fazer as últimas comprinhas pro nosso cardápio, partimos de toyota, junto com um grupo de turistas, pro nosso grande objetivo: os Lençóis Maranhenses. Uma faixa de dunas de aproximadamente 70 x 30km, salpicada por inúmeras lagoas doces e coloridas, mereceu mesmo o apelido de lençóis. Que visão espetacular! Parece que o tempo nem passa…
Após passar algumas horas na lagoa e nas suas enormes dunas, quando demos conta, estávamos a sós na Lagoa Azul, depois do retorno dos montes de toyotas com turistas. Apenas o barulho do vento, o sol se pondo com cor de ouro e a paz voltou àquele lugar. Nós cinco, sentados em silêncio, totalmente hipnotizados por aquela paisagem quase lunática, com a imaginação vagando solta.
Andamos alguns quilômetros entre as dunas e lagos, seguidos por sombras compridas de mais de 15 metros, enquanto os companheiros apareciam e sumiam, caminhando pelas dunas vizinhas, e armamos o primeiro acampamento, ainda meio bobos com a beleza do lugar. A temperatura muito agradável, com o vento rasteiro levando a areia, dunas macias e pequenas sombras da textura ondulada do chão fazem mesmo você se sentir em outro mundo…
As inúmeras dúvidas nos planejamentos da viagem foram se evaporando no meio daquelas paisagens, como dificuldade de se andar na areia, calor insuportável, água potável e outros bichos. Pensamos até em levar raquetes de neve para os sapatos, para facilitar a caminhada na areia fofa. Mas felizmente, no começo das dunas as nossas dúvidas foram sendo esclarecidas. Fomos desistindo das papetes e botas e em pouco tempo estávamos andando descalços, com um ventinho constante pra frescar e mergulhos nas lagoas cristalinas, de roupa e tudo.
O vento e a areia fina pouco abrasiva fazem com que andar descalço seja confortável e compacto o suficiente para não afundar demais. Perfeito! À noite a temperatura também não baixa muito dos 30°C, sendo que agasalhos são dispensáveis. Basta uma camiseta de manga comprida, bermuda, um chapéu e óculos escuros para escapar do sol e se desligar da Terra!
Quando o sol ficava muito forte, armávamos um toldo na beira de alguma lagoa e cochilávamos até o sol abrandar. Como não existe nenhuma vegetação no deserto, amarrávamos o toldo nos bastões de caminhada mesmo, escorados nas mochilas. Descer as dunas era também algo divertido, escorregando como se esquiássemos duna abaixo.
As lagoas variam as suas cores entre cristalina, verde e azul, dependendo do tipo de alga que ela contém. Geralmente a profundidade não passa da cintura, dependendo da época do ano, mas algumas tinham mais de 3 metros, como a Lagoa Azul. Quanto mais afastado do litoral, maiores são as dunas e as lagoas. No inverno maranhense (época das chuvas, de janeiro a junho) as lagoas enchem com água da chuva e vão evaporando-se no restante do ano, quando as chuvas constantes cessam. Incrivelmente encontra-se até peixinhos nessas lagoas, cujos ovos ficam depositados na areia durante a seca e eclodem quando as águas retornam. Há também algumas belas flores aquáticas, que fincam as suas raízes no fundo e ficam à tona, balançando com o vento.
No terceiro dia encontramos os únicos seres humanos que vimos durante a travessia, nos “oáses verdes” de Baixa Grande, Queimada dos Lira e Queimada dos Britos, que são bem próximos uns dos outros, com apenas uns 5 km de comprimento. Os habitantes são famílias errantes, que se deslocam para o litoral, quando as águas desaparecem, no verão. No deserto, às margens do rio Verde, eles criam cabras e alguma cultura de subsistência e aproveitam pra pescar, quando estão no litoral. Apesar de muito simples, as famílias que vivem na Baixa Grande e Queimada dos Lira possuem casas de alvenaria, muito bem organizadas, com curral para os animais, horta e flores nos canteiros. Extremamente hospitaleiros e curiosos, ficamos horas conversando com Seu Domingos, Dona Maria Francisca e Dona Evanir, que até nos serviu suco de pepino com côco, uma espécie de melão da região. Dominguinhos, filho de Seu Domingos, com 25 anos, nunca tinha saído da Baixa Grande pra conhecer outra cidade. Dá pra imaginar o que as nossas mochilas coloridas, óculos e equipamentos chamavam a atenção, não? Ainda é raro aparecer por lá, alguém atravessando os Lençóis com mochila nas costas. De vez em quando, aparece alguma expedição de jipe ou motos e é só.
Já a Queimada dos Britos, a mais famosa nas reportagens e matérias que tínhamos lido, nos causou uma grande decepção. Apesar de terem as mesmas condições dos seus vizinhos, vivem em choupanas de palha, crianças no meio dos porcos, no meio do seu próprio lixo. Preferimos nem pernoitar lá e acabamos seguindo viagem e acampando no meio das dunas mesmo. Nessa tarde tivemos até um show especial de pancadas de chuva passando ao nosso lado. É lógico, que uma passou bem por cima da gente, mas felizmente já estávamos devidamente alojados nas nossas barracas.
O cardápio, logicamente, tem que estar completo para todos os dias no começo da viagem, pois não existem pontos de apoio e reabastecimento no meio do deserto. O pessoal que vive por lá, quase não dispõem de alimentos e remédios para eles mesmos. A água potável das lagoas é abundante, o que já alivia bastante o peso da mochila. Para dormir, geralmente procurávamos um trecho plano e fofo entre duas lagoas. Uma era a nossa cozinha e a outra era usada pra higiene e banho. E como a areia é fofa próximo aos lagos, nem isolante é necessário. Dormir ao relento pode não ser uma ótima idéia, pois você corre o risco de virar uma duna! Tudo o que se deixa no chão é rapidamente encoberto pela areia, portanto tome cuidado com os objetos pequenos, como chinelos. Moral da história: é possível viajar muito leve pra lá.
Quando não se vai com guias, que foi o nosso caso, levar um GPS é primordial. Faça a programação prévia dos pontos que gostaria de passar no deserto e distâncias diárias, como os “oáses” e boa sorte. Como não há referência alguma no horizonte, fica muito difícil a navegação com mapas e bússola. As cartas topográficas da região não são fáceis de achar e se consegue apenas com o exército.
É claro que você vai ouvir do pessoal local, que é impossível fazer a travessia sozinho e histórias de bichos de sete cabeças, mas com um pouco de experiência na rotina de caminhadas longas, cardápio, primeiros socorros e montagem de acampamento, vira brincadeira de criança. Os locais fazem a travessia em 3 dias, mas programe no mínimo 5, para não se preocupar com data de retorno e correrias. O local merece uns bons dias reserva, para sentar-se em cima de uma duna e ficar contemplando a paisagem por horas.
E pode contar com no mínimo o dobro da distância de caminhada prevista pelo mapa, pois não se consegue andar em linha reta, desviando das lagoas e dunas mais altas. Apesar de andarmos geralmente a 4 km/h, não fazíamos mais de 15 km por dia. Quando há lua cheia, a caminhada noturna fica linda e mais fresca do que de dia e vale a pena programar uma noite pra caminhar.
Por incrível que pareça, mesmo no meio das areias, a vida animal é bem agitada, com peixes nas lagoas, aves que sempre estão a reclamar da nossa proximidade aos seus ninhos e até piningas, um tipo de tartaruga do deserto. Essa tem que ser bem ligeira pra se manter viva, pois é um prato bem apreciado pelos moradores dos oáses.
No quinto dia, sem pressa nenhuma, chegamos à vila de Santo Amaro, já no lado oeste dos Lençóis, à beira do Lago de Santo Amaro. Com as ruazinhas todas de areia, Santo Amaro já possui algumas vendinhas e alguma estrutura, mas ainda precária. O único meio de transporte para se sair de lá é um “trator-ônibus”, que leva os passageiros literalmente empoleirados num reboque, durante 1,5 horas, até a vilazinha de Alegre, às margens do rio Alegre, de onde sai uma barca enorme, de 30 metros, que vai até a ilha da capital São Luis. O trator é realmente o meio de transporte mais apropriado e chegou a entrar até a metade da roda dentro d’água. Mesmo jipes estão sujeitos a não passar. Realmente o piloto da barca tem que ser muito hábil, para conseguir manobrar aquele navio num riozinho tão apertado, que não tinha mais de 20 metros de largura. Garantimos o nosso lugar com as nossas redes e ficamos nos perguntando, por que a mata era toda quebrada na borda do riozinho. A resposta veio, assim que a barca começou a navegar. Para conseguir fazer as curvas, o timoneiro é obrigado a jogar a proa da barca para a parte de dentro da curva e a popa para a parte de fora e mesmo assim, sai arrastando a barca pela mata. Além de ter que conhecer muito bem as cheias e vazantes da maré, que é a maior variação do país, com quase 7 metros, tem que saber desviar dos bancos de areia, para não ficar atolado. Não é a toa que é chamado de mestre…
Depois de 14 horas de viagem, durante a noite, chegamos a São José do Ribamar, cidade vizinha a São Luis, a capital. Lá ficamos no albergue da juventude, próximo ao centro histórico e aproveitamos os últimos dias para visitar a cidade histórica de Alcântara, os casarões e teatros da época do império e se esbaldar com a ótima culinária local. Não deixe de experimentar o arroz de cuxá, o caranguejo e o doce de espécie (uma espécie de queijadinha em forma de tartaruga, maravilhosa). Planejando sua viagem
A época certa para visitar os Lençóis Maranhenses é de junho a setembro, que é quando acaba as estações das chuvas (inverno maranhense) e começa a seca (verão). As lagoas estão cheias e não chove todo dia. Além disso, as dunas estão compactas para caminhar. O sentido da caminhada deve ser sempre no sentido do vento, ou seja, de leste para oeste, pois do contrário, vc teria que enfrentar uma tarefa quase impossível, de subir as dunas. Dependendo da altura e posição das dunas, passávamos por cima delas, até avistar a lagoa seguinte e tomar a decisão do ataque á próxima duna, procurando não afastar demais da linha reta apontada pelo GPS até o nosso destino final diário.
A travessia tem aproximadamente 60 km, mas não se engane, pois se anda praticamente o dobro da distância, desviando das lagoas mais profundas ou dunas mais altas.
Pode ser feita em 3 dias, mas além de ficar um pouco puxado, vale a pena aproveitar o interior do deserto sem pressa. A entrada para o deserto pode ser feita por Atins (no litoral e na beira dos Lençóis) ou com uma toyota a partir de Barreirinhas, durante 1 hora, até a Lagoa Azul, no começo dos Lençóis. O que os guias de Atins oferecem, são 2 dias até a Queimada dos Britos e mais um retornando pela praia até Atins, mas geralmente não fazem toda a travessia até Santo Amaro. Em Barreirinhas também pode-se contratar guias ou pegar uma excursão turística, que geralmente vai para a Lagoa Azul e sair andando de lá, como nós fizemos. Para os aventureiros que querem mais liberdade, basta contar com a ajuda de um GPS e sair caminhando.
Barreirinhas já foi um tanto corrompida pelo turismo em massa, mas é o melhor ponto para abastecimento de alimentos e conexão com São Luis. Já possue boa estrutura, mas prefira levar o cardápio semi-pronto e deixar apenas as coisas mais básicas para comprar lá. A visita à cidade de Mandacaru é quase obrigatória. Do alto do seu farol, tem-se uma bela vista dos Lençóis, do mar e do rio Preguiça.
As lagoas do deserto são teoricamente potáveis, mas como às vezes há animais por perto, não custa nada levar um esterilizador químico ou filtro de água.
Transportes
Há um ônibus de São Luis a Barreirinhas ou Tutóia, que leva aprox. 9-10 horas. O transporte entre as cidades menores geralmente é feito com toyotas, com bancos de madeira na caçamba. Pula um pouco, mas é divertido e é muito barato. O transporte fluvial de Parnaíba a Tutóia, Atins a Barreirinhas e Alegre a São José do Ribamar é também muito barato e leve a sua rede, para se acomodar. De Atins a Barreirinhas leva aproximadamente 3,5 horas de barca, por R$3, enquanto de voadeira leva-se 1,5 horas e custa por volta de R$25. De Santo Amaro a São Luis, a condução é um trator até Alegre e 14 horas de barca (R$13) até São José do Ribamar, ao lado de São Luis.
Geralmente os preços são muito acessíveis, dependo da sua negociação…
Sempre conte com uma reserva de tempo para os transportes, pois eles sempre dependem da maré.