Fizemos a terceira descida do histórico Rio Roosevelt no mês de maio de 2003, em uma expedição de seis pessoas, cobrindo cerca de 650 quilômetros pelos estados de Rondônia, Mato Grosso e Amazonas. Foram 25 dias viajando auto-suficientes em canoas, dos quais metade foram gastos para cobrir os 150 km iniciais, dentro da Reserva Indígena Roosevelt, terra dos índios Cinta-Larga, onde havia corredeiras fortes e freqüentes. A segunda metade cobriu partes surpreendentes de um rio Amazônico que é “fechado por corredeiras”, já que além das do trecho inicial o rio também tem corredeiras bem fortes – até classe V – no seu trecho final, já próximo a sua foz, no Rio Aripuana.No contexto amazônico, o Rio Roosevelt se destaca por varias razões. Primeiro, por ser um rio “ilhado” por causa das corredeiras no início e final, tornando a sua navegação bastante técnica e trabalhosa. Depois, pela história de sua exploração em uma expedição antológica, liderada pelo Marechal Rondon e pelo ex-presidente americano Theodore Roosevelt. Além disso, chama a atenção a dificuldade de acesso, o grau de preservação da sua maioria e o isolamento em que se encontram as poucas comunidades ao longo do rio. Para ler o restante desse relato, clique aqui!

Curiosamente, as três descidas do rio foram expedições internacionais. Em 1909 a Comissão Rondon cruzou com um rio até então desconhecido dos cartógrafos ao entrar na região onde atualmente é a Rondônia. Foi o primeiro registro do Rio da Dúvida. No ano de 1914, Roosevelt fazia uma viagem ao Brasil e outros países da América do Sul com o objetivo de dar palestras e coletar espécies para o Museu de História Natural de Nova York. Uma vez no Brasil, acabou convidado a acompanhar o Coronel Rondon na expedição pelo ainda inexplorado Rio da Dúvida. Este rio, que nascia no então território do Guaporé e descia em direção ao norte, jamais fora percorrido pelo homem civilizado, e nem se sabia ao certo onde desembocava. Após 48 dias e muitas dificuldades, remando em canoas feitas de troncos de arvores, haviam mapeado todo o traçado do rio, que foi rebatizado como Rio Roosevelt nesta viagem.

Na década de 80, Tweed Roosevelt, neto do ex – presidente e bem sucedido investidor, contratou um equipe de guias da companhia americana Sobek para organizar uma descida ao rio, curioso para conhecer e explorar as pegadas de Theodore. Completaram a descida em condições bem diferentes, utilizando auxílio de helicóptero, bases estabelecidas em locais do rio para reabastecimento, balsas de rafting, caiaques e embarcações a motor. Índios Cinta Larga lhes serviram de guias e também contavam com apoio de brasileiros na expedição.

A nossa expedição teve um caráter e estilo próprio bem diferente. Para explorar o rio de acordo com nossos interesses optamos por canoas. É uma alternativa que minimiza impactos ambientais (combustíveis, ruído) e sociais (meio de transporte usual na área); é fácil de transportar tanto em transportes coletivos quanto ao redor de obstáculos, leiam-se corredeiras e cachoeiras (sendo que ai não requer alteração no ambiente para tal), é uma alternativa viável para expedições de baixo orçamento e proporciona um ritmo de viagem em sintonia com o ritmo local.


Escolhemos o Rio Roosevelt na região sudoeste da bacia amazônica através de uma série de coincidências: a época do ano (maio-junho) era ideal na região, pois marcava o início da “seca” e garantiria bom nível de água, um dos participantes era americano e já havia lido um artigo escrito sobre a viagem de Roosevelt e Rondon, suspeitávamos que estaríamos fazendo a terceira descida do rio (fato confirmado durante nossa expedição), poderíamos nos deslocar para a região de ônibus, e ao olhar nas cartas de escala 1:1.000.000 havia muitos trechos com “cachoeiras” no seu alto curso. Escolhemos as rotas de entrada e saída no rio pensando em o quão remotos gostaríamos de estar, o nível técnico das corredeiras do rio e o tempo disponível.
A expedição em si teve cinco etapas: o planejamento, preparação e chegada no rio; o difícil e remoto trecho de corredeiras; o longo e hospitaleiro curso médio do rio; o grande rio Roosevelt, e os resultados e desdobramentos da pós-expedição.

O foco do planejamento foi segurança e simplicidade. Na prática foi simples, já que a equipe, equipamentos e recursos disponíveis estavam definidos. O que deu mais trabalho foi levantar algumas informações (ex: se havia transporte público na transamazônica; info de contato via rádio das três fazendas da margem do rio; periculosidade da região – garimpo e madeireiros; etc.), enquanto as informações e recursos fáceis de obter foram referentes à saúde e doenças, como mapa de endemismo de malária, leishmaniose, soro antiofídico, etc. A “lição de casa” pronta, partimos para Rondônia e aí sim começou o exercício de flexibilidade. Chegar ao rio num período onde a região estava sob intensa intervenção da policia por causa de um garimpo fechado dentro da reserva indígena, negociar com os índios para ter permissão para cruzar sua reserva, FUNAI, checar as opções de evacuação aérea locais, etc.

Finalmente começamos a remar. Já no primeiro dia no rio tudo muda, agora é entre nós e com o Rio Roosevelt. Aos poucos vamos nos familiarizando com suas águas, corredeiras, margens, vegetação, insetos, tipo de acampamento, pássaros, luzes, etc.

Dos diários de viagem:
“Dia 4: a coisa começa a ficar séria quando encontramos as primeiras corredeiras classe IV. Carregamos canoas e equipamentos pela lateral do rio. Encontramos as primeiras formigas cortadeiras. Descemos a parte final da corredeira nas canoas. Átila e André, Fábio e Flávio são empurrados em direção a pedra na direita do rio. Flávio cai da canoa nos rodamoinhos. Jon e Jim descem limpos. Trecho emparedado em cânion, André e Átila viram ao fazer um ferry. Reunimos-nos na margem antes de continuar. Chegamos a uma corredeira classe IV (afunilamento e queda de alguns metros) após cerca de 20 km no rio (primeiros macacos e ariranhas avistados hoje). Decidimos acampar na imensa laje de pedra junto à corredeira. Lua cheia, araras vermelhas, eclipse.

Dia 5: aproveitamos o local de descanso para a prática de resgate e natação em corredeiras. Jim toma várias picadas de vespa na cabeça ao topar com um ninho na mata – tx anti-histamínicos e analgésicos. Jon inicia o cuidadoso e importante ritual de cuidar dos alimentos: secar e arejar (tivemos legumes frescos até o último dia da viagem!). As redes de selva servem como saco de bivaque. Primeiros reparos no casco das canoas. Poucas abelhas e selva densa. Inscrições rupestres nas rochas!!!”

Após 12 dias temos o primeiro contato com outras pessoas, a balsa da Fazenda Muiraquitã, uma das fazendas que veríamos no médio curso do rio. Só chegamos a sua sede no dia seguinte, de onde André toma o avião de volta a suas obrigações de sua “outra vida”. É uma nova fase na viagem. Dias longos, águas quase paradas interrompidas por algumas poucas corredeiras, o rio – que no início tinha cerca de 10 a 20 metros de largura – agora tem secções de 100 a 300 metros.

Alem da Muiraquitã, conhecemos pessoas em vários locais neste trecho: um grupo de pescadores que nos convidam para um almoço em seu acampamento a margem do rio, na Fazenda Buritizal, em Panelas e na pousada Rio Roosevelt. São pessoas cujas vidas tem uma forte ligação com o Rio Roosevelt e que ampliaram muito nossa compreensão da vida ao longo do rio, assim como a sua estória.

“Dia 20: a pá de seu remo tinha o formato de uma gota e metodicamente entrava e saia da água. Ele ia sentado na proa da canoa de tronco e se aproximou de nós como se encontrasse pessoas de longe remando em canoas de materiais sintéticos com a mesma freqüência que vê a selva amazônica, macacos e araras. Chico dos Santos é um seringueiro, artesão, marceneiro, construtor de remos e canoas, pescador e lavrador, e vive na palafita que construiu com sua mulher e os filhos. Na porta de sua casa se lê, escrito a giz “Welcome friends”. Foi escrito por sua filha, que mora na casa da avó em Panelas (meio dia de viagem a canoa de sua casa e cinco dias de veículo 4×4 de Aripuana) para lá poder estudar.”

Ficamos boquiabertos com as habilidades, maneiras e orgulho deste homem. Hoje, a área onde ele nasceu, cresceu e vive é uma reserva extrativista estadual. O que isso significa só o tempo vai dizer. Passamos a tarde conversando, aprendendo as maneiras de viver da terra na Amazônia enquanto fazíamos mais um reparo em uma das canoas, nos preparando para a primeira “remada” noturna da viagem.

Assim que a noite caiu, embarcamos nas canoas, preparamos uma plataforma de “trabalho” amarrando as canoas juntas e iniciamos nossa deriva. Ali podíamos cozinhar e nos ocupar com outras coisas enquanto o rio fazia o que ele faz e assim nos levava em direção a nosso destino. Nossos companheiros eram a Ursa Maior, Cruzeiro do Sul e Escorpião, uma interessante mescla de estrelas dos hemisférios norte e sul. Viajar à noite propiciava “experimentar” a Amazônia através de outros sentidos. Fantástico!

Na corredeira do Infernão, logo após o rio receber as águas do Rio Madeirinha – onde fica uma linda pousada, construída com técnica e materiais locais – marcou o início da terceira fase da descida. De acordo com o relato de Roosevelt, que íamos lendo conforme passávamos nos mesmos lugares para poder “acompanhar” a expedição deles de perto, já em 1914 aí havia um entreposto para suprir os seringueiros que se aventuravam na região.

Daqui para frente o Roosevelt é um grande rio amazônico, com trechos de remanso intercalados por algumas corredeiras, e depois “16 km de corredeiras sem parar e a Sumaúma, a maior de todas as corredeiras do rio” segundo os locais. Os “16 quilômetros” de quase constantes corredeiras terminavam com uma corredeira classe V com um volume de água impressionante. Logo abaixo dela, estava a capela da Sumaúma e um pequeno cemitério. Aqui encontramos ribeirinhos que nos informaram que se quiséssemos poderíamos ir a Transamazônica a pé, pois ela estava “logo ali”, alguns quilômetros numa trilha.

No próximo dia chegamos onde o Rio Roosevelt deságua no Rio Aripuana. Foi um momento forte para todos. Paramos de remar e assistimos ao final do Rio Roosevelt. Impossível não pensar em todas as estórias que o Rio Roosevelt nos contou através de suas águas, margens, praias, corredeiras, pessoas, insetos, historia. Após alguns minutos começamos a olhar rio acima, na direção do Aripuana, e foi impossível não pensar nas muitas outras estórias que esses rios e águas do Brasil ainda tem para nos contar.

Logo depois chegamos ao destino final, com a certeza de que muitos outros desdobramentos seguirão. Foi a primeira expedição do projeto Brasil a Remo, que visa difundir o potencial e viabilidade de visitação sustentável de locais de difícil acesso no Brasil e assim ampliar o papel de atividades recreativas/esportivas para auxiliar no desenvolvimento e/ou sobrevivência local. As regiões escolhidas no projeto sofrem pressões pelo uso da terra de alto impacto (mineração, extração madeireira, pesca, especulação imobiliária, etc.) muito fortes e a ampliação do conhecimento e visitação destes locais pode ajudar a que tenha maiores chances. O projeto também visa promover o desenvolvimento da canoagem no Brasil como veio de exploração e viagem de baixo impacto ambiental e cultural.

Uma “descoberta” impressionante é o fato da região do Sudoeste Amazônico / Noroeste de Mato Grosso ser um paraíso pouco explorado para a canoagem de águas brancas e concentra os melhores rios para sua pratica no Brasil.

O Rio Roosevelt – que é um dos vários que nascem em altitudes semelhantes, correm pela mesma formação geológica, na mesma direção e terminam na mesma altitude – é excelente, em qualidade, quantidade e características das corredeiras – na avaliação de participantes cuja experiência somada inclui várias descidas nos rios Bio-Bio e Futaleufu (Chile), Gran Canyon, Rubicon e Middle Fork Feather (EUA), Back e Hess (Artico), Drysdale (Australia).

Muitas são as lições que emergem de expedições, mas a mais importante é como ao final o que determina o sucesso é o espírito com o qual ela se realiza. Para descer o Roosevelt viajamos completamente auto-suficientes, levamos alimentos necessários para toda a duração do trajeto, todos os equipamentos de camping, peças sobressalentes, materiais e kits para reparos, telefone por satélite, mapas e extensos kits de primeiros socorros e de medicamentos e soro antiofídico. Trazíamos extensa experiência prévia em expedições de longa duração, em técnicas de canoagem, primeiros socorros na natureza (Wilderness First Responder), resgate e organização necessária para expedições.

Mas o que realmente fez com que tivéssemos sucesso foi adotar uma mentalidade onde todas as decisões eram norteadas por segurança, responsabilidade e respeito.
Abraço a todos e até a próxima,

Fabio Raimo

Para saber mais:

Seguindo as Remadas de Roosevelt – Clique Aqui!Livro: Nas Selvas do Brasil, Theodore Roosevelt, Ed Itatiaia

6 Replies to “Explorando o Rio Roosevelt a Remo”

  • Parabéns,pratioo canoagem turismo em rondonia há 8 anos,moro aqui ,desci o rio machado de p.bueno á ji-parna,rio muqui e o guaporé entre costa marques e guajará.Hoje tenho vontade de fazer esse percurso com caique de 5 metros duplo e um caiaque de 5 metros .abraços.

  • Ja fis tres espedição a este rio e se tudo der serto vou morar la me apaxonei pla fauna e flora perto do emcotro dorio branco umpouco abaxo a direita de quei esta desendo o Rio o meu nome e Americo de sa

  • suas informações foram muito valiosas para a nossa pesquisa sobre o Rio roosevelt, para o projeto aguas de mato grosso, escola são vicente paula de sinop-mt. em 30/10/ 2011.

  • Prezado Fabio Raimo,
    Muito importante esses dados dessa viagem que, certamente só de ler já emociona muito, além da historia, do conhecimento, da pesquisa, para que as instituições de pesquisa, educação e de areas do governo ligado ao turismo possam ter a certeza de que podem fazer investimento, tanto as empresas publicas e incentivar as empresas privadas. Principalmente no investimento e construção de pousadas para exploração do ecoturismo, da pesca esportiva e pesquisa da nossa biodiversidade.
    SAUDAÇÕES,
    Paulo Alho-Novo Aripuanã-Am

  • Prezado Fabio Raimo,
    Parabenizo-os pela iniciativa de refazerem o trajeto do projeto que culminou para o reconhecimento do Rio da Duvida pela expedição científica Roosevelt-Rondon, passando então a se chamar Rio Roosevelt. No livro “Rondon Conta Sua Vida”, de Esther de Viveiros, editado em 1958 e reeditado pela Biblioteca do Exército em 2010, um capítulo descreve as difuldades que a expedição enfrentou em 1914. Vale a pena a leitura.

  • Parabéns pela aventura. acabei de ler o livro RIO DA DÚVIDA, de Candice Millarrd, e confesso que fiquei fascinado com a história e agora com muita vontade de conhecer o rio. Embora conheça Vilhena, Pimenta Bueno, Cacoal e todas as cidades as margens da BR 364 de passagem, não conheço o rio, nem sei onde é sua nascente.

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